segunda-feira, 14 de abril de 2014

Você não é especial , Tati Bernardi

Você não é especial

Nosso namoro acabou durante uma festinha de gente moderna que odeia publicidade e ama literatura mas adora publicitário e detesta ler. Na cozinha. Você colocou duas pedras de gelo na taça de vinho, me mostrou o dedão da mão direita e disse "o que você vê aqui?". Não poderia ser um teste idiota pra saber se eu estava bêbada –eu não bebo. "Um dedão", eu disse. E você balançou a cabeça, olhou demoradamente pra bunda da gordinha que tentava alcançar a última cerveja na parte mais baixa da geladeira e me mostrou novamente o dedão: "aposto que você vê as linhas, a pelezinha que eu cutuquei, essa mancha de grafite de uma lapiseira de quando eu era criança e... eu me sinto mal com tudo isso".
Na manhã seguinte, fiquei horas sentada em frente a uma página do Word. Até que escrevi "vinho aguado" e apaguei. Escrevi "mais do que um simples dedão" e (achei ridículo demais e) apaguei. Escrevi "o gelo, a bunda e o dedão" e achei que parecia um conto pornô tosco e apaguei.
Quando a Marta chegou, eu estava ouvindo Cassandra Wilson e escrevendo "linhas, peles e manchas". Ela me deu um abraço demorado, do tipo "se quiser desmoronar sua carcaça condoída em meus ossos, te cedo esses segundos" e eu só desejei que ela fosse embora logo para eu poder terminar o texto. O epicentro da dor é cem vezes melhor pra criatividade do que qualquer curso "pra escritor" que publicitário faz pra se achar menos idiota.
Passei a tarde repassando meus detalhes preferidos. Seu jeito compenetrado e inseguro de descer escadas; a meia gigante e suada que nunca, nem por um dia sequer, cheirou mal; a nossa piada preferida sobre "mijar naquelas piscinas cheias de velas e flores, típicas de casamento metido a besta" e a micro sobrancelha esquecida que você tem a dois centímetros da sobrancelha oficial.
Eu tinha doze anos quando ouvi a voz pela primeira vez: "ela observou o caixão de longe e chorou. Não porque estivesse com vontade, mas porque estava com fome e achou que chorando alguém pudesse lembrar que ela ainda era uma criança e precisava comer". Eu estava no velório da minha avó e, de repente, tudo começou a ser narrado dentro da minha cabeça: "o mais terrível dentro de um caixão é o nariz do morto, o nariz morre mais e primeiro que todo o resto".
Lembro que uma tia me tirou dali, porque eu chorava muito, e me comprou um cachorro quente, numa barraquinha em frente ao cemitério: "e então ela jamais conseguiria comer um cachorro quente novamente" e "pelo menos não foi um sanduíche de presunto".
Te chamei para ir ao cinema, te deixei em casa e me convidei pra subir. Me comporto como um homem quando um homem é homem o suficiente pra me deixar com o pau duro. Seu dedão é torto, quente, com calos, com um resto de alergia do detergente de maçã verde, com uma sujeira de Bic azul há quatro dias mesmo você tendo compulsão em lavar as mãos, com um micro chumaço de no máximo sete pelos mais escuros e algumas penugens microscópicas mais alouradas.
A professora colocou um vaso lá na frente e mandou a gente descrever: vermelho, pequeno e para colocar flores. Eu escrevi: triste, vazio e barato. Ela mandou chamar minha mãe. Mesmo você não tendo a menor importância, tenho plena certeza de que era amor.

Tati Bernardi, na Folha, 14/04/2014
Tati Bernardi

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Em frente

Então a gente percebe que mais um ciclo precisa ser fechado.
Apesar do medo. Apesar da insegurança. do conforto que o velho trás, como uma roupa que se ajusta ao corpo. É preciso despir. Deixar para trás o que não agrega mais.
Restarão alegrias e cicatrizes.Aprendizado.
É preciso seguir em frente.E todo dia relembrar do mantra da minha vida: "Tudo passa". O bem e o mal. A alegria e a tristeza.Pode demorar. Pode ser agora. Posso nem sentir.
Mas passa. Vai passar.